Acorda, Castro Alves!
(No Centenário do Poeta)
Condor, que é de tuas asas
Que os astros arremessaram?
As plumas da águia soberba
Que no infinito brilharam?
Que é do teu grito altaneiro
Que atravessava o nevoeiro
Para vibrar junto a Deus?
Renasce, Fênix altiva!
Que outra senzala aflitiva
Precisa dos cantos teus!
Oh, sim! Foi Deus que em seu trono
Entre florões e alabastros
Levou-te, pássaro imenso,
Para o ninho azul dos astros!
Antes que a dor nos consuma
Faze da lira uma pluma,
Uma só... pra nos cobrir!
E os trapos que nos restarem
Daremos aos que chegarem
Com as gerações do Porvir.
Acende o verbo de fogo!
Vibra tua lira de ouro!
Acorda os anjos no espaço!
Transmite a Deus nosso choro!
Dize lá pelo Infinito
Que na terra um povo aflito
Precisa de remissão!
Tu, que a Deus pediste tanto,
Interpreta o nosso pranto!
Conta-Lhe a nossa aflição!
Tu foste o “leader” de um povo,
Libertador de uma raça;
Mandaste o Trabalho aos campos,
Trouxeste o Direito à praça!
Pois vem ver quantas choupanas
Guardando dores tiranas,
Cheias de fome e suor!...
Livraste os negros, outrora;
Pois livra os brancos, agora,
Que o prêmio será maior!
Não viste o escravo africano
Lá no porão dos navios
Dançando ao som do chicote
Entre gritos e arrepios?
Vem ver — em promíscuos lares —
Homens com os mesmos esgares,
Irmãos no mesmo sofrer!
— A Fome uivando nos tetos,
— Enfermos e analfabetos
Sem pão, sem fé, sem prazer!
Tu já cantaste de Tebas
As derrocadas colunas;
Dos beduínos cansados
O pranto a correr nas dunas;
Pois vem ver quanta desgraça
Que pelo mundo perpassa
Como terrível simum…
— A tragédia do operário!
— O drama do proletário!
— A luta do homem comum!
Vem ver o pranto da ciência
Que os átomos desagrega
E que o valor desse invento
Somente no mal se emprega!
Que em vez de erigir colossos
O sábio faz calabouços
Para seu próprio martírio…
Esse insulto à Natureza
Será luz? Será grandeza?
Responde: “Não! É um delírio!”
Ó gênio, que nos deixaste
A luz do teu pensamento!
Toda a terra em que nasceste
Celebra teu nascimento!
Há cem anos a Bahia
Deu-te — ó gigante — à Poesia,
Deu-te — ó astro — ao Ideal!
— Uma lanterna ao Escuro,
— Uma legenda ao Futuro,
— A glória ao vate imortal!
A voz dos negros do Congo
Correndo o tempo inda está,
Para encontrar com o “Avante!”
Dos soldados de Humaitá;
E os desgraçados Quilombos
Esperam inda os ribombos
Do teu verbo — esse tambor…
São mortos que andam dispersos
Pedindo a luz dos teus versos,
Da tua lira, Condor!
Agora, mais do que nunca,
Nós precisamos de ti!
— Dos seringais do Amazonas
Aos extremos do Chuí —
A voz do amargo momento
Exige esclarecimento
“No concerto universal”;
Teus versos inda são ditos
Como se fossem escritos
Para o momento atual!
A Pátria da linda Musa
Por quem morreste de amor,
Chora debaixo do jugo
De Salazar — ditador! —
E a tua pátria hebréia
Deve estar lá na Judéia
Chorando à margem do Hebron,
Vendo o mordaz calabouço
Decapitar o pescoço
De seus irmãos do Sion!
As irmãs de Inez, a Linda,
Tua saudosa espanhola,
Repetem tuas endechas
À sombra da castanhola!
São Musas que não te viram,
Lábios que nunca sentiram
Do teu beijo a calidez…
E elas choram com saudade,
Sentindo a inútil vontade,
Vontade... de ser Inez!
II
Ai! Deixa, vate, os páramos celestes!
A roupagem de luz com que te vestes,
Vem comigo a vagar…
Esquece as espanholas e os noivados
E escuta as notas tristes, os dobrados
Da orquestra popular!
Não sabes que Abdullah é soberano?
Não vês que resplandece o Vaticano
Cheio de ouro e matizes?
Pois rasga — como Cristo — esse teu manto
E com um trapo da ourela enxuga o pranto
No olhar dos infelizes!
Não fales a linguagem lá do Olimpo
Mas grita com teu verbo aceso e limpo
Ao povo, à multidão!
Transformaram-se, apenas, as senzalas…
E tu, poeta imortal, por que não falas
Da nova Escravidão?!
Vem comigo! Olha as fábricas, as ruas…
Nas calçadas estão criancinhas nuas,
Talvez inda em jejum!
Sobre o colo materno elas se arrastam
Mas dos lábios as tetas logo afastam…
— Não há líquido algum!
Essas mães não têm leite! Os seios magros
Secaram-se-lhes, pois, aos dias agros
De triste inanição!
Os seus filhos famintos, descarnados,
Poderiam ser doutos, magistrados…
— São mais pobres que um cão!
Quanta dor vaza o seio estremecido
Da mãe cujo filhinho desnutrido
Morre antes de falar!...
A Inocência definha — flor do charco —
E a Morte em cada cova deixa um marco
De mágoa popular!
Lá no bairro o casebre é um ponto morto…
— Fim da vida e do sonho — o desconforto,
A dor, o sofrimento!...
E a lua — essa espiã das noites fias —
Cobre a choça infeliz com as ironias
De um riso ermo e cinzento!
Ali, sob um espaldar de visões turvas,
De palhas, rotas, de soleiras curvas,
De chão áspero e frio,
Uma prole, de músculos desfeitos,
Reclama da Igualdade esses direitos
Que a Lei guarda em seu brio!
Em derredor, as árvores paradas
São irmãs do infeliz! Dormem, geladas,
Da noite à placidez…
E a mãe, deitada à flor do úmido solo,
Ressona com o filhinho sobre o colo,
Expirando, talvez !...
O mar pergunta ao céu pela clareza…
O céu pergunta ao mar pela grandeza…
E a névoa cobre a lua!
no reino do Poder há riso e festas…
Mas nas cabanas sujas e modestas
A trova continua!...
Nos leitos do hospital — no último termo! —
Cada vela acompanhou o olhar dum enfermo
Numa prece final…
E o filho desse pai desfeito em tosse
Tem como herança a tísica precoce,
— Aguarda outro hospital!...
Nas ruas, ao ferver de enormes filas,
Mulheres magras, a exibir mochilas,
Famintas pedem pão…
E o Câmbio Negro em cínicas risadas
Mostra os dentes — mandíbulas blindadas —
Mordendo a multidão!
E eu pergunto por ti, cantor dos bravos,
Das mulheres formosas, dos escravos,
Da crença no Porvir…
O meu eco se perde, não respondes…
“Em que céus, em que estrelas tu te escondes?”
Devias ressurgir!
A morte? Não há morte quando há glória!
Vive o nome do morto sobre a História,
Dos tempos ao correr…
O sepulcro se cobre de grinaldas,
As sementes do amor brotam nas fraldas,
— É um eterno viver!
Olha o sol como bate nas campinas!
Esse orvalho que rola das boninas
Aos beijos da manhã!
Acorda, lá no céu, na Imensidade,
E vem de braços com a Eternidade,
— A tua grande Irmã!
Vem banhar neste sol a flor dos músculos!
Ver as tardes no seio dos crepúsculos
Num beijo tropical!
E os ombros da floresta dando açoites
Nas asas infinitas dessas noites,
— Pássaro universal!
Desce, pois, grande vate, lá do Empíreo!
A Bahia te espera num delírio,
Orgulhosa de si…
Pernambuco te vê, no céu azul,
E as “belas filhas do país do sul”
Inda esperam por ti!
Renasce! A tua lira é doce orquestra…
Revive: Quem na lousa te seqüestra
Junto ao pó dos mortais?...
O mundo é um drama... Volta! Olha o proscênio!
É tempo de voltar! Acorda, gênio!
Já dormiste demais!...
Fortaleza, 14 de março de 1947.
Nota — Este poema foi editado em Fortaleza, por ocasião do centenário de Castro Alves, com uma apreciação de Jorge Amado.
Condor, que é de tuas asas
Que os astros arremessaram?
As plumas da águia soberba
Que no infinito brilharam?
Que é do teu grito altaneiro
Que atravessava o nevoeiro
Para vibrar junto a Deus?
Renasce, Fênix altiva!
Que outra senzala aflitiva
Precisa dos cantos teus!
Oh, sim! Foi Deus que em seu trono
Entre florões e alabastros
Levou-te, pássaro imenso,
Para o ninho azul dos astros!
Antes que a dor nos consuma
Faze da lira uma pluma,
Uma só... pra nos cobrir!
E os trapos que nos restarem
Daremos aos que chegarem
Com as gerações do Porvir.
Acende o verbo de fogo!
Vibra tua lira de ouro!
Acorda os anjos no espaço!
Transmite a Deus nosso choro!
Dize lá pelo Infinito
Que na terra um povo aflito
Precisa de remissão!
Tu, que a Deus pediste tanto,
Interpreta o nosso pranto!
Conta-Lhe a nossa aflição!
Tu foste o “leader” de um povo,
Libertador de uma raça;
Mandaste o Trabalho aos campos,
Trouxeste o Direito à praça!
Pois vem ver quantas choupanas
Guardando dores tiranas,
Cheias de fome e suor!...
Livraste os negros, outrora;
Pois livra os brancos, agora,
Que o prêmio será maior!
Não viste o escravo africano
Lá no porão dos navios
Dançando ao som do chicote
Entre gritos e arrepios?
Vem ver — em promíscuos lares —
Homens com os mesmos esgares,
Irmãos no mesmo sofrer!
— A Fome uivando nos tetos,
— Enfermos e analfabetos
Sem pão, sem fé, sem prazer!
Tu já cantaste de Tebas
As derrocadas colunas;
Dos beduínos cansados
O pranto a correr nas dunas;
Pois vem ver quanta desgraça
Que pelo mundo perpassa
Como terrível simum…
— A tragédia do operário!
— O drama do proletário!
— A luta do homem comum!
Vem ver o pranto da ciência
Que os átomos desagrega
E que o valor desse invento
Somente no mal se emprega!
Que em vez de erigir colossos
O sábio faz calabouços
Para seu próprio martírio…
Esse insulto à Natureza
Será luz? Será grandeza?
Responde: “Não! É um delírio!”
Ó gênio, que nos deixaste
A luz do teu pensamento!
Toda a terra em que nasceste
Celebra teu nascimento!
Há cem anos a Bahia
Deu-te — ó gigante — à Poesia,
Deu-te — ó astro — ao Ideal!
— Uma lanterna ao Escuro,
— Uma legenda ao Futuro,
— A glória ao vate imortal!
A voz dos negros do Congo
Correndo o tempo inda está,
Para encontrar com o “Avante!”
Dos soldados de Humaitá;
E os desgraçados Quilombos
Esperam inda os ribombos
Do teu verbo — esse tambor…
São mortos que andam dispersos
Pedindo a luz dos teus versos,
Da tua lira, Condor!
Agora, mais do que nunca,
Nós precisamos de ti!
— Dos seringais do Amazonas
Aos extremos do Chuí —
A voz do amargo momento
Exige esclarecimento
“No concerto universal”;
Teus versos inda são ditos
Como se fossem escritos
Para o momento atual!
A Pátria da linda Musa
Por quem morreste de amor,
Chora debaixo do jugo
De Salazar — ditador! —
E a tua pátria hebréia
Deve estar lá na Judéia
Chorando à margem do Hebron,
Vendo o mordaz calabouço
Decapitar o pescoço
De seus irmãos do Sion!
As irmãs de Inez, a Linda,
Tua saudosa espanhola,
Repetem tuas endechas
À sombra da castanhola!
São Musas que não te viram,
Lábios que nunca sentiram
Do teu beijo a calidez…
E elas choram com saudade,
Sentindo a inútil vontade,
Vontade... de ser Inez!
II
Ai! Deixa, vate, os páramos celestes!
A roupagem de luz com que te vestes,
Vem comigo a vagar…
Esquece as espanholas e os noivados
E escuta as notas tristes, os dobrados
Da orquestra popular!
Não sabes que Abdullah é soberano?
Não vês que resplandece o Vaticano
Cheio de ouro e matizes?
Pois rasga — como Cristo — esse teu manto
E com um trapo da ourela enxuga o pranto
No olhar dos infelizes!
Não fales a linguagem lá do Olimpo
Mas grita com teu verbo aceso e limpo
Ao povo, à multidão!
Transformaram-se, apenas, as senzalas…
E tu, poeta imortal, por que não falas
Da nova Escravidão?!
Vem comigo! Olha as fábricas, as ruas…
Nas calçadas estão criancinhas nuas,
Talvez inda em jejum!
Sobre o colo materno elas se arrastam
Mas dos lábios as tetas logo afastam…
— Não há líquido algum!
Essas mães não têm leite! Os seios magros
Secaram-se-lhes, pois, aos dias agros
De triste inanição!
Os seus filhos famintos, descarnados,
Poderiam ser doutos, magistrados…
— São mais pobres que um cão!
Quanta dor vaza o seio estremecido
Da mãe cujo filhinho desnutrido
Morre antes de falar!...
A Inocência definha — flor do charco —
E a Morte em cada cova deixa um marco
De mágoa popular!
Lá no bairro o casebre é um ponto morto…
— Fim da vida e do sonho — o desconforto,
A dor, o sofrimento!...
E a lua — essa espiã das noites fias —
Cobre a choça infeliz com as ironias
De um riso ermo e cinzento!
Ali, sob um espaldar de visões turvas,
De palhas, rotas, de soleiras curvas,
De chão áspero e frio,
Uma prole, de músculos desfeitos,
Reclama da Igualdade esses direitos
Que a Lei guarda em seu brio!
Em derredor, as árvores paradas
São irmãs do infeliz! Dormem, geladas,
Da noite à placidez…
E a mãe, deitada à flor do úmido solo,
Ressona com o filhinho sobre o colo,
Expirando, talvez !...
O mar pergunta ao céu pela clareza…
O céu pergunta ao mar pela grandeza…
E a névoa cobre a lua!
no reino do Poder há riso e festas…
Mas nas cabanas sujas e modestas
A trova continua!...
Nos leitos do hospital — no último termo! —
Cada vela acompanhou o olhar dum enfermo
Numa prece final…
E o filho desse pai desfeito em tosse
Tem como herança a tísica precoce,
— Aguarda outro hospital!...
Nas ruas, ao ferver de enormes filas,
Mulheres magras, a exibir mochilas,
Famintas pedem pão…
E o Câmbio Negro em cínicas risadas
Mostra os dentes — mandíbulas blindadas —
Mordendo a multidão!
E eu pergunto por ti, cantor dos bravos,
Das mulheres formosas, dos escravos,
Da crença no Porvir…
O meu eco se perde, não respondes…
“Em que céus, em que estrelas tu te escondes?”
Devias ressurgir!
A morte? Não há morte quando há glória!
Vive o nome do morto sobre a História,
Dos tempos ao correr…
O sepulcro se cobre de grinaldas,
As sementes do amor brotam nas fraldas,
— É um eterno viver!
Olha o sol como bate nas campinas!
Esse orvalho que rola das boninas
Aos beijos da manhã!
Acorda, lá no céu, na Imensidade,
E vem de braços com a Eternidade,
— A tua grande Irmã!
Vem banhar neste sol a flor dos músculos!
Ver as tardes no seio dos crepúsculos
Num beijo tropical!
E os ombros da floresta dando açoites
Nas asas infinitas dessas noites,
— Pássaro universal!
Desce, pois, grande vate, lá do Empíreo!
A Bahia te espera num delírio,
Orgulhosa de si…
Pernambuco te vê, no céu azul,
E as “belas filhas do país do sul”
Inda esperam por ti!
Renasce! A tua lira é doce orquestra…
Revive: Quem na lousa te seqüestra
Junto ao pó dos mortais?...
O mundo é um drama... Volta! Olha o proscênio!
É tempo de voltar! Acorda, gênio!
Já dormiste demais!...
Fortaleza, 14 de março de 1947.
Nota — Este poema foi editado em Fortaleza, por ocasião do centenário de Castro Alves, com uma apreciação de Jorge Amado.